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Pensar as imagens da independência a partir de novos prismas é a intenção deste projeto, afinal, mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+ e outros corpos marginalizados também foram importantes no processo que culminou no grito às margens do Ipiranga em 1822. Os trabalhos desenvolvidos pelos artistas apresentam um novo olhar sobre as personagens da independência, apresentando corpos e sujeitos velados nesses 200 anos e também questionam os “heróis” fabricados através das imagens criadas para esse momento da história do Brasil.
TEXTO CURATORIAL
Gritar, se colocar em evidência. Quando pensamos em criar essa mostra virtual queríamos explicitar narrativas e personagens apagados dos registros oficiais da história das artes voltadas à pintura histórica. Nosso principal desejo era revelar; revelar personagens ou leituras complexas de um momento tão singular de um país: a sua independência. No Brasil existe um discurso de que não tivemos revoltas, não tivemos guerras, todos os momentos históricos de ruptura foram realizados de forma pacífica, sem grandes enfrentamentos onde o poder pode até ter mudado de comando, mas se manteve nas mãos da elite e das classes dominantes. Tal leitura é enviesada, pois apenas perpetua a ideia de povo cordial, disseminada em momentos como a Era Vargas e até em propagandas turísticas. A luta pela independência está envolta em conjurações, revoltas e lutas populares que prontamente foram caladas pelo poder público. Houve mortes, houve silenciamentos. Minorias lutavam pela independência ao poder de Portugal, fosse por estratégias que almejavam a separação de territórios ou a independência do país como um todo. Os gritos foram múltiplos porém, a história oficial criou apenas uma narrativa, com apenas um grito vencedor, mais precisamente às margens do Ipiranga no dia 07 de setembro de 1822, conforme ficou fixado na história oficial. Uma das obras mais emblemáticas, que confunde fatos reais com narrativas criadas, é a obra O Grito do Ipiranga ou Independência ou Morte, criado pelo artista paraibano Pedro Américo. Finalizado em 1888, a pintura, com dimensões imponentes, se tornou, ao longo dos anos, a representação fiel do evento da independência. Entendida como uma fotografia do momento, não é levada em consideração a mão do artista, que incluiu elementos e transformou outros - D. Pedro I não realizava a viagem entre Santos e Rio de Janeiro em cima de um robusto cavalo e sim em uma mula, animal considerado, na época, mais propício para aguentar viagens longas em terrenos acidentados. A distância do rio, a posição das colinas e mesmo o casebre ao fundo do quadro, todos receberam licença poética do pintor para melhor se adaptarem à cena (re)criada. Assim, a independência se tornou um momento, uma história com apenas uma narrativa possível: a do quadro, em que o grito que se sobressai é proferido a todos os pulmões por um único sujeito, representante do poder vigente mas que quer se libertar de Portugal: Dom Pedro, o primeiro do Brasil mas quarto de Portugal. A criação pictórica de Américo circulou, nesses 135 anos de sua existência, em diferentes suportes. Em jornais, livros didáticos de história, filmes, cartazes dentre outros meios, a imagem foi disseminada pelo país, transformando-se em narrativa oficial. O uso por instituições oficiais do governo e espaços formadores (como as escolas) perpetuou o imaginário sobre a independência e, assim, fomos aceitando uma imagem criada como retrato fiel e indiscutível da história. Todavia outros gritos começaram a ecoar. Outros personagens responsáveis pela independência foram sendo visibilizados, outras narrativas recontadas com a mesma importância do evento de 07 de setembro. As representações de tais momentos e sujeitos passou a entrar nos museus e livros, mostrando que o tecido social da independência foi formado por diferentes tramas, com texturas e cores que estavam sendo apagadas quando se decidia por apenas um marco, uma narrativa. Pensando nos diferentes eventos e vozes que permeiam os 200 anos do grito, criamos a exposição virtual Independência ou Morte - Decolonizando o Grito. O nome provém do título da tela de Pedro Américo, ponto de partida para nossos questionamentos junto aos artistas. Utilizando a imagem do quadro, conversamos com cada artista sobre as representações do momento histórico e, qual seria o seu grito a partir de um retrato ficcional da independência que ecoa em tantos momentos históricos na memória coletiva. Cada artista teve a liberdade de seguir seu caminho, de fazer o seu brado ecoar pelos percursos da exposição. Alguns escolheram ressignificar a imagem do quadro incluindo elementos no mesmo, fazendo uma releitura ou, até, uma mixagem da obra original. Outros partiram de personagens ocultos da imagem, como as mulheres negras e indígenas, para criar imagens das vozes ocultas que berravam e berram a todo pulmão sobre seu direito à liberdade e à independência. Davi Benaion performa na frente de um fundo verde, que se transforma no quadro de Américo. Utilizando dance challenges populares no TikTok, Benaion faz uma releitura do quadro a partir do deboche. Inclui personagens como Maria Quitéria, Joana Angélica, Maria Felipa, Manuel Faustino, Luiz Gonzaga, João de Deus, Lucas Dantas em sobreposição ao quadro. A sua imagem, o quadro da independência e os quadros de cada um desses personagens se fundem em diferente proporção, criando o sobretelas que o artista evoca no título do trabalho. Denilson Baniwa também utiliza a imagem de Américo como base para seu trabalho, que ganha autoria dupla, de Baniwa e Américo em seu canto direito. A prática de intervenção em imagens - gravuras e pinturas - é uma marca do artista, que questiona imagens lidas como históricas e marcadas como verossímeis ao momento que representam com tom de humor. Um dos cavalos ganha voz, confessa seu cansaço na correia para chegar às margens do Ipiranga enquanto D. Pedro I questiona: onde fica a independência? A cena parece mais fidedigna ou que pode ter ocorrido, sujeitos confusos com o momento e em busca de uma nova certeza e um novo poder para se agarrar. Jota Carneiro cria uma tela com personagens esquecidas de tal momento da história: as mulheres. Brancas, negras e indígenas, as mulheres não aparecem na representação de Américo. Impossível não lembrar como o papel de D. Leopoldina, esposa de D. Pedro I, foi apagado na construção da independência do Brasil. Com o passar dos anos sua representação em tal momento histórico passou a ser mais ativa e imagens para além da imperatriz como mãe começaram a ser produzidas em pinturas e gravuras. Jota coloca suas personagens de peito aberto, sem camisa, em contraste com os personagens masculinos do quadro Independência ou Morte. As mulheres revelam seu torso, seu ventre, mostrando que são as criadoras e mães do país. rafael amorim parte com um caminho similar a de Denilson e Davi: utiliza o quadro de Américo como base para sua denúncia. O título de seu trabalho, Esopo, remete ao autor grego de fábulas como A cigarra e a formiga e o menino que gritava lobo. As fábulas de Esopo servem, até hoje, como lições de moral para crianças mas não deixam de ser narrativas fantásticas onde os animais falam e fazem escolhas. E como não identificar a imagem do quadro de Américo como uma fábula que é repetida inúmeras vezes? O quadro não é uma imagem fotográfica, é um conto preventivo do que acontece quando tentam manter a colonização de uma nação rica. É uma fábula criada, não apenas no que diz respeito ao brado mas também às consequências de tentar aprisionar o país. Cuidado, somos independentes. amorim brinca com o velar e revelar a cena, assim como reforça o questionamento: será que devemos acreditar em tudo que nos dizem ser oficial? E as margens? Quando podemos acreditar no marginalizado? Tadáskía evidencia o escondido em seu livro de desenhos. As irmãs negras ainda buscam sua independência, sua liberdade. Lutam, diariamente por seus direitos e por um descanso das amarras de uma sociedade que continua a separar por gênero, raça e classe. Afinal, quem são os independentes de 1822? Quem são os independentes de 2022? Os cinco gritos apresentados na exposição se proliferam, fazem personagens e situações se tornarem visíveis, nos fazem questionar a veracidade do quadro, da independência e de suas poucas representações oficiais. Junto com as obras, cada artista produziu um pequeno texto sobre seu trabalho. A apresentação ganha voz ativa ao contar com o depoimento em primeira pessoa. Desejamos que a exposição seja uma semente a ser germinada em gritos plurais e escutados por mais sujeitos. Pois, se a escolha é apenas entre a independência ou a morte, é necessário que mais vozes sejam ouvidas e façam as suas independências.

FICHA TÉCNICA
Realização
O Sorvete e a Rosa
Correalização
Bomba Criativa Produções
Curadoria
Julia Baker
Juliana Pereira
Artistas
Davi Benaion
Denilson Baniwa
Jota Carneiro
rafael amorim
Tadáskía
Programação e identidade visual
Indigo Design
Filmagem e edição (making of)
Luiz Guilherme Guerreiro